domingo, 27 de março de 2011

O Morcego .

Meia-noite. Ao meu quarto me recolho.
Meu Deus! E este morcego! E, agora, vede:
Na bruta ardência orgânica da sede,
Morde-me a goela ígneo e escaldante molho.

"Vou mandar levantar outra parede..."
- Digo. Ergo-me a tremer. Fecho o ferrolho
E olho o teto. E vejo-o ainda, igual a um olho,
Circularmente sobre minha rede!

Pego de um pau. Esforços faço. Chego
A tocá-lo. Minh’alma se concentra.
Que ventre produziu tão feio parto?!

A Consciência Humana é este morcego!
Por mais que a gente faça, à noite, ele entra
Imperceptivelmente em nosso quarto!

{Augusto dos Anjos}

sábado, 19 de março de 2011

Celebração .


Vamos sorrir e brindar à vida em bailes de máscaras.
Vamos fingir e esconder todas as nossas lástimas.
Vamos guerrear pelas verdades que nem nós mesmos vivemos.
Vamos dizer e dizer e dizer tudo sobre aquilo que não conhecemos.

Vamos mostrar as nossas forças e esconder o que somos.
Vamos esquecer a realidade e viver somente em sonhos.
Vamos deixar a bondade e viver como víboras.
Vamos nos alimentar de nossas próprias mentiras.

Vamos errar e continuar errando, os caminhos que dizemos seguir.
Vamos nos auto-enganar e não preservar o que nos faz sorrir.
Vamos exterminar o amor, e espalhar o nosso drama.
Vamos manipular a mente alheia e celebrar à raça humana.

Seres hipócritas e facínoras
Imensos purgatórios vivos...
Pessoas covardes, assassinas
Conto de terror aprazível...

sexta-feira, 18 de março de 2011

Acidente .

A deriva do vento impestuoso
se desdobram as folhas secas,
silenciosas, nas valas, pecas
sob a luz do luar nebuloso

Submergida em neurastenia
Humilhada pelos contrastes
entre os atônitos e os trastes
Desfaleço em melancolia

Recorro às sinteses genéticas
para o paradoxo em questão
Pois nem a moral, ou a ética,
poderiam apagar a impressão
que a minha mente funesta
carrega de quaisquer ilusão

Se vejo que a tristeza não releva
nem os infantes, nem os loucos
nem presos, tampouco os soltos
quem seria eu, por entre as eras?

A não ser só mais uma peça
d'um jogo que às avessas
foi criado pelo Universo?

Quem seria senão mais um pedaço
de poeira cósmica no espaço
que desfaz-se entre versos?

quarta-feira, 9 de março de 2011

Além da vida .

Saydion compartilhou de um intenso amor com Eleonor durante poucos meses.
O romance, sempre repleto de limitações, não deixou de ser, em nenhum momento, encantador e ingênuo.
Surgiu, porém, um mal arrebatador que contaminou o frágil corpo da jovem Eleonor, levando-a a passar dias e noites, enferma, em seu leito já quente, pela sua constante presença.
Saydion, sem mais suportar as saudades que lhe rasgaram o peito durante horas que mais pareciam-lhe a eternidade, adentrou ao quarto da jovem donzela, sorrateiramente, pela janela, para que a parentela da moça não fizesse questão de intrometer-se em sua conversa com a moça amada, e, estando próximo à princesa que dominava seus mais belos sonhos, disse, em baixa voz:
- Deusa minha, a ti recorro como se não houvesse mais ninguém neste mundo, pois diante da tua formosura e do teu cândido olhar, todo o universo paraliza-se diante de minha face, e só consigo observar a ti, aos teus cabelos negros que bailam em sintonia com o som das folhas balançadas pelo vento...
Eleonor, com os olhos semiabertos e voz esganiçada, respondeu:
- Eis que já vejo a morte rodear minha cama, e temo que este, seja o último momento em que estaremos juntos. Meus olhos já se fecham, meu coração parece estar emitindo seus derradeiros batimentos. Sinto medo. Meu último desejo é ter em meus quentes lábios, a vivacidade dos teus... Beije-me Saydion. Não diga mais nem uma só palavra. Apenas beije-me...
Então, Saydion aproximou-se de Eleonor, rapidamente, para não perder mais nenhum segundo ao lado dela, da forma mais arrebatadora possível. Encostou seu rosto no da amada, e a beijou carinhosa e veementemente, como jamais havia feito em instante algum da sua vida. Após a concretização do último desejo de Eleonor, o rapaz afastou seus lábios trêmulos dos da moça e assustou-se ao ver os olhos dela, espantosamente abertos, petrificados, a fitá-lo. Num constante pavor, tocou as mãos da donzela e as teve como gélidas, paralizadas, inválidas.
Eleonor estava morta.
Desesperado, Saydion foge pela janela de onde entrou, e retorna à sua casa.
Chegando em seu quarto, não dorme, apenas permanece deitado, imóvel, tendo em mente o opaco visto nos olhos da sua princesa, da dona dos seus mais verdadeiros sorrisos.
No dia seguinte, acompanhou o enterro da que seria sua futura esposa. Enquanto todos gritavam, choravam e lamentavam da maneira mais estrondosa possível, ele nada dizia. O pobre moço seguia triste, porém, frio, sem derramar uma lágrima sequer, suportando toda a dor, calado. No término da fúnebre cerimônia, todos foram embora, e o rapaz também foi.
Em seus aposentos, Saydion, não conseguindo tirar do pensamento, a beleza e a graciosidade de Eleonor, teve então, a idéia de ir até onde se encontrava o túmulo dela, com a finalidade de tentar sentir o seu perfume, mesmo que escasso, no ar, mais uma vez. Assim, seguiu caminho ao tal lugar, sendo de repente abordado por uma furiosa tempestade, estando próximo aos portões do cemitério, todavia, isso não o impediu de alcançar seu objetivo.
Ao chegar no túmulo da amada, o jovem sentiu-se finalmente em paz, mas também sentiu uma insana e incontrolável vontade de beijar os gelados lábios de Eleonor, novamente.
Ouvindo seus instintos, foi à procura de algumas ferramentas, e, conseguindo-as, retornou ao leito frio, daquela que possuía sua mente, sem hesitar.
Com muito sacrifício, Saydion desterrou o caixão, onde adormecia Eleonor e o abriu. Vendo aquele rosto pálido, sentiu algo queimando seu corpo e seu coração. Não pensou duas vezes; tomou a morta sob seus ombros e a levou para sua casa.
Já em casa, despiu a falecida virgem, que tinha a água da chuva , grudada em sua pele, levou-a ao banheiro e deu-lhe um banho. Após isso, ele também se banhou.
Depois de banhar-se, Saydion repousou o corpo da amada sob sua cama, e somente ali, pôde observar claramente, pela primeira vez, a nudez da mulher, a quem havia entregado seu coração. Os cabelos negros dela, enormes, cobriam os pequenos seios; e, sua cintura fina se contrastava com as coxas roliças...
Saydion estava perplexo diante de tamanha beleza. Aproximou-se de Eleonor, e beijou sua boca, vagarosamente.
Então, da maneira mais brusca e súbita possivel, olhou para os lados e percebeu o quão pavoroso era o que está fazendo. Fixando seu olhar no olhar da mulher a quem beijara, disse:
- Há muito tempo eu já havia entregue a ti o meu coração, e hoje entregarei a minha alma, como a maior prova de amor que posso dar-te. Creio que nem a dor, nem a desilusão, e muito menos a morte, poderão arrancar a grandeza do que sinto por você. Eu te amo, minha Deusa...
Saydion cobriu o corpo da moça com um lençol branco; deitou-se na cama ao lado dela, pegou o punhal que se abrigava sob a escrivaninha e o cravou em seu peito.
[...]
Em pouco tempo, foi percebida a ausência de Eleonor, no sepulcro onde a deixaram. Aterrorizados, os homens da família da moça foram à casa de Saydion, para perguntar-lhe se ele sabia onde a moça poderia estar. Chegando ao referido local, foi preciso que quebrassem os ferrolhos do portão para adentrar à casa do rapaz, já que ninguém respondia às vozes que se elevavam diante do portão.
Dentro da casa, reinava um silêncio amedrontador.
Dentro do banheiro, pequenas gotas d'água caíam de um chuveiro semiaberto.
Dentro do quarto, haviam dois corpos em decomposição, e um punhal com vestígios de sangue.

Amor após a morte...

sábado, 5 de março de 2011

... Apenas ...

Só você conheceu a mulher corajosa que admitiu todos os medos, todas as neuroses, todas as inseguranças, toda a parte feia e real que todo mundo quer esconder.
Ninguém nunca me viu tão nua e transparente como você, ninguém nunca soube do meu medo de não ser boa o suficiente.
Só você viu meu corpo de verdade, minha alma de verdade, meu prazer de verdade,meu choro embaixo da coberta com medo de não ser bonita e inteligente. Só para você eu me desmontei inteira porque confiei que você me amaria mesmo eu sendo desfigurada, intensa e verdadeira, como um quadro do Picasso.

{ Tati Bernardi }

Fostes útil .

Jamais imaginei que tu podias sorrir
ou que ao menos, sofreria
por não ser o que gostaria de ser,
por não ter nenhuma companhia

Apenas cria que perfeito eras
e que contigo, poderia eu, deveras...
entrar em harmonia... Oh! Quem diria?

Descobertas foram as tuas mentiras, teus agravos
Para mim fostes tristeza e espasmo
Fui uma escrava, e o Amor, meu carrasco

Mas o mundo dá muitas voltas
e as minhas poesias tortas
que podem fazer-te rir,
são hoje as minhas drogas
Não mais você, e elas sim
dão a mim, razão de existir

Não preciso mais da cor do teu olho,
do teu engano ou de palavras em vão
Já foi muito útil, sendo o corvo
que destruiu todo o adorno
que embelezava meu coração...

Iluminação .

Eclodem os trovões
dissipando minhas vísceras
Disparam os clarões
iluminando as malícias
que, em meio a borrões
abandonam as procissões
e adentram às delícias.
Exorcizam as indecisões
e logo após as missas,
percebem que as missões
existiam por falta de milícias.

Dessa forma, o tal clarão
retratou o sacristão
abusando das noviças.

Viva à hipocrisia,
ao berço da utopia:
- Nós mesmos...

Ela .

Em algum momento ela chegará
Onde estarei no tal instante?
Sinto-a aqui rondando o ar
Retirando minha força - incessante

Silenciosamente, ela vem vindo
e traz consigo o medo do perigo
Grande pavor estou sentindo
O que acontece comigo?

Incapacidade, invalidez
Nervosismo, taquicardia
Me dominou outra vez:
Maldita fobia...